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31/08/2007

Algumas reflexões éticas para o Vegetarianismo

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Causou-me uma surpresa inicial o fato de que muitos deles, não apenas nem mencionavam a via vegetariana, mas eram professores e/ou profissionais no ramo do abate e pré-abate animal. No ano passado, já como pesquisador visitante na Universidade de Cambridge (UK), participei de um curso com um renomado especialista em abate e consultor técnico de matadouros, Steve Wotton (na mesma sala de aula havia representantes de várias ONG’s internacionais de defesa animal, do PETA inclusive). Note-se que estamos falando não apenas de pessoas que não vêem problemas éticos em alimentar-se com carne, mas de gente que ganha a vida pensando em como matar animais – com uma suposta minimização técnica de sofrimento. Agora podemos especular: o que dizer delas moralmente? São simplesmente perversas, sofrem de uma miopia moral, ou estão sinceramente motivadas pela idéia do “melhor possível”?

Meses antes, durante um jantar na presença do Embaixador Britânico em Lisboa, eu perguntara, provocativamente, à célebre primatóloga Jane Goodall se ela achava possível alguém respeitar animais e, ao mesmo tempo, comê-los. A pergunta foi feita em público e, sendo Goodall um ícone, evidentemente todos ouvem o que ela diz sobre animais. Foi nessa temporada na Inglaterra, onde estive morando recentemente, que comecei a prestar maior atenção na eficácia pragmática das diferentes tonalidades de discurso ativista.

De qualquer modo, parece que ainda há muito espaço para crescimento de conscientização no Brasil quanto à condição animal, se compararmos com a situação inglesa. Lá a parcela de vegetarianos na população é de 7% a 10%. Há versões veganas e “cruelty-free” para tudo o que você possa imaginar. Na minha pesquisa em Ética Animal na biblioteca da Universidade de Cambridge, deparei-me um artigo intitulado “Why ‘Vegetarian’?” publicado num periódico acadêmico de abril de … 1898! Ou seja, uma discussão aprofundada em Ética Animal datando de dois séculos atrás. Um das maiores entidades, The Vegan Society, já tem 60 anos de existência. O grau de desenvolvimento do engajamento inglês pró-animal é tal que existe uma ONG dedicada exclusivamente a dar apoio alimentar vegano nas prisões inglesas, a Vegan Prisoners Support Group, completando 13 anos de atividade prisional. No que talvez seja o maior encontro do gênero na Europa, o London Vegan Festival, encontrei nada menos que 100 entidades. Não à toa em dezembro último foi lançado um partido político dedicado exclusivamente à causa animal, o Animals Count, presidido por Jasmijn de Boo, de cuja inauguração tive o prazer de participar. É digno de nota que a agenda deste partido é bem-estarista, e não abolicionista. Quando alguém do auditório protestou indignado a este respeito, Alex Bourke, figura de referência do ativismo veganista internacional, que também presidia a assembléia de fundação, respondeu que o partido estava a procura de resultados práticos. Sei que este tópico é ponto de forte disputa teórica e bastante espinhoso em termos estratégicos. Mas menciono tudo isso porque penso que é extremamente profícuo para nós, brasileiros, acompanhar a movimentação ativista de quem começou antes a caminhada, adaptando suas experiências positivas e negativas à realidade brasileira.

É claro que a noção de “direitos” é mais sólida nos países anglo-saxões, e isto tem influência na mobilização de conscientização pública contra qualquer tipo de opressão. A psicologia latina seria mais suscetível à idéia de compaixão. A noção de boicote também é mais intuitiva lá do que aqui: calcula-se que o montante boicotado nos diversos setores da economia inglesa atinja 1 bilhão de libras anuais. Muitos aqui ainda pensam que adotar pessoalmente o Vegetarianismo implicaria em abandonar um paladar, um prazer culinário, opções de restaurantes e rodas sociais, sem a garantia de que essa atitude vá salvar um único animal sequer de ir para o abatedouro. O problema do boicote é que a intuição do senso comum não é quantitativa, isto é, não opera em números. Se pensarmos que já temos leis anticrueldade no nosso país, os crimes ambientais estão tipificados e praticar maus-tratos é ilegal e dá cadeia no Brasil – mas continuam sendo praticados – parece que o modo mais eficiente de atuação engajada não seria na urna eleitoral, mas, sim, no caixa do supermercado e na Internet, gerando publicidade negativa e, deste modo, redução de lucros.

A questão da motivação ativista pró-animal apresenta também outra particularidade. Você pode notar que muitos websites e textos de defesa animal estampam, como epígrafe, citações do filósofo alemão Albert Schweitzer. Ora, Schweitzer se refere em seus pensamentos à condição de qualquer ser vivo. Ou seja, ele não restringe sua ética apenas aos animais. E se você analisar o discurso ativista pró-animal, verá que o foco moral se alterna entre “todo o ser capaz de sofrer” e “toda a vida é preciosa”. Esta ambigüidade faz a retórica animalista vacilante: fala-se do respeito pelo senciente em certos momentos e, em outros, evoca-se o respeito pelo vivo – duas modalidades de respeito moral com extensões (ontológicas) distintas. Abelhas, por exemplo, são seres vivos que, segundo o que diz a Biologia, não são capazes de sofrer. Mas animais não-sencientes ainda seriam capazes de serem escravizados, neste caso, para a obtenção de mel. Esta é uma questão de fundo no debate Veganismo versus Vegetarianismo, cuja explicitação teorética, no meu ponto de vista, mereceria maior atenção por parte dos filósofos voltados à Ética Animal / Direitos Animais.

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Carlos M. Naconecy é filósofo pela UFRGS, mestre e doutor em Filosofia pela PUCRS, concentrando seus estudos em Ética Animal há vários anos. Foi pesquisador visitante no Animal Welfare and Human-Animal Interactions Group da Universidade de Cambridge (UK) e é Associate Fellow do Oxford Centre for Animal Ethics. É autor do livro Ética & Animais, Edipucrs, 2006.

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