Notícias

21/01/2025
O mito da carne sustentável: desvendando os impactos de diferentes sistemas de criação de gado
Compartilhe
A criação de animais para consumo é um fenômeno de grande escala. Somos oito bilhões de seres humanos, mas anualmente criamos e abatemos mais de setenta bilhões de animais terrestres — e uma quantidade ainda maior de animais aquáticos. Como consequência, enfrentamos uma série de impactos ambientais decorrentes dessa atividade, que tem contribuído para o colapso climático do nosso planeta.
Nesse contexto, muito se debate sobre caminhos para tornar a pecuária mais sustentável, com propostas envolvendo modelos de criação teoricamente menos agressivos em relação ao meio ambiente. Para desmistificar a ideia de que o consumo de animais pode ser sustentável, é fundamental analisar os impactos ambientais de diferentes sistemas de criação. Neste texto, focaremos nossa análise na produção de bovinos devido à sua significativa contribuição para as emissões de gases do efeito estufa (GEE). No entanto, vale ressaltar que a produção de outros animais também é extremamente danosa ao meio ambiente, como já demonstrado em textos publicados anteriormente sobre o consumo de frangos e peixes, por exemplo.
De modo sucinto, os sistemas de criação de bovinos podem ser divididos em três tipos principais: intensivo, semi-intensivo e extensivo. O sistema intensivo envolve o confinamento dos animais, alimentados principalmente com forrageiras e complementos à base de ração e concentrados. Já o sistema semi-intensivo deixa o gado parte do tempo solto e parte do tempo confinado, com alimentação que mescla forrageiras e ração. Por fim, o sistema extensivo — também conhecido como “grass-fed” — é um modo de criação em áreas de pastagem, em que a dieta dos animais consiste basicamente de pasto. Os impactos ambientais oriundos de cada um desses sistemas de criação variam em termos de emissões de gases de efeito estufa, uso da terra, entre outros fatores.
Diversos estudos científicos baseados em avaliações do ciclo de vida (ACVs) têm investigado as variações de impacto ambiental entre os diferentes sistemas de produção animal. Um estudo publicado em 2021 por pesquisadores da Universidade da Califórnia indica que sistemas de confinamento estão associados a menores emissões de gases de efeito estufa. Já os bovinos criados a pasto tendem a ganhar peso mais lentamente devido à menor densidade energética de sua alimentação, resultando em um abate mais tardio. Além disso, esses animais apresentam um aumento na produção de metano entérico devido às dietas ricas em forragem. Essa combinação de dieta e maior tempo de vida contribuiria para uma maior emissão de metano pelo gado criado em pasto.
Por outro lado, um estudo de 2018 publicado por pesquisadores da Michigan State University apontou que os sistemas de criação com pastos bem manejados têm potencial para sequestrar carbono. Essa capacidade poderia compensar parte da produção de metano entérico pelo gado criado a pasto. Um relatório da Universidade de Oxford corrobora essa ideia ao afirmar que o potencial de sequestro de carbono de sistemas grass-fed poderia compensar de 20% a 60% das emissões dos sistemas de pastoreio, 4% a 11% do total de emissões da pecuária, e entre 0,6% e 1,6% do total anual de emissões antropogênicas de gases de efeito estufa. Contudo, é importante enfatizar que o sequestro de carbono depende de uma série de fatores, como o tipo e qualidade do solo, clima, níveis de precipitação, disponibilidade de nutrientes, composição da fauna do solo, comunidades microbianas, tipo de vegetação etc. Além disso, a absorção de carbono pelo solo tende a diminuir com o tempo, chegando a zero quando o solo atinge um equilíbrio.
Apesar do potencial de sequestro de carbono oferecido pela criação de gado “grass-fed”, a pecuária tem, inegavelmente, um longo histórico de contribuição para o aquecimento global. Isso se deve principalmente a duas razões: primeiro, a pecuária é uma das principais causas do desmatamento, liberando enormes quantidades de carbono na atmosfera. Segundo, ela emite outros gases de efeito estufa ainda mais nocivos do que o carbono, como metano e óxido nitroso. De acordo com dados da FAO, a pecuária é responsável por 14,5% das emissões globais de gases de efeito estufa de origem antropogênica. No contexto brasileiro, a maior parcela das emissões provenientes da pecuária vem do desmatamento. Reflexo disso foi que, em 2022, a agropecuária foi responsável por 95,7% do total de áreas desmatadas no Brasil, consolidando-se como o principal vetor de supressão da vegetação nativa.
Como resultado, o desmatamento para a criação de novas pastagens libera na atmosfera enormes estoques de carbono que estavam armazenados na biomassa da vegetação original. Além da emissão de gases do efeito estufa, essas práticas ameaçam a biodiversidade e impactam importantes dinâmicas climáticas e hidrológicas. Portanto, mais do que o desenvolvimento de tecnologias e métodos capazes de fazer áreas de pastagem absorver carbono, é fundamental a proteção de áreas florestais, para que elas não se transformem em pastagens.
De fato, existem sistemas produtivos menos agressivos do ponto de vista ambiental, como a integração lavoura-pecuária-floresta (ILPF). Essa técnica combina a criação de gado com o cultivo de alimentos e a presença de árvores, gerando benefícios ambientais, como melhora da qualidade do solo, recuperação de áreas degradadas, redução do uso de agroquímicos, aumento da biodiversidade e sequestro de carbono. Contudo, de acordo com pesquisa de 2019 conduzida pela Embrapa, este tipo de sistema de criação era utilizado em apenas 15 milhões de hectares no Brasil à época do estudo — ou seja, representa menos de 10% das áreas de pastagens do país, que totalizam 167 milhões de hectares.
Para efeitos comparativos, um estudo da Embrapa (2023) reuniu diversos levantamentos sobre a taxa de estoque e sequestro de carbono em florestas e sistemas de produção agrícola na região amazônica. Os estudos mostram que estoques de carbono em diferentes fitofisionomias florestais variam entre 131 e 227 ton de carbono por hectare, com acúmulo anual de 1,5 ton de carbono por hectare em florestas maduras e 10,6 ton de carbono por hectare em florestas primárias. Em contrapartida, pastagens para pecuária em solos de baixa fertilidade natural apresentam perdas de carbono: 0,15 ton de carbono por hectare/ano em áreas bem manejadas e 1,53 ton de carbono por hectare/ano em áreas mal manejadas. Ainda segundo o estudo, mesmo em condições ideais — pastagens em solos de alta fertilidade natural e manejo adequado — o acúmulo de carbono alcança 0,46 ton de carbono por hectare/ano, chegando a 2,58 ton de carbono por hectare/ano em áreas com sistema ILPF. Ou seja, por mais que a pecuária possa empregar técnicas para sequestro de carbono, tornando-se menos agressiva do ponto de vista ambiental, a opção mais sustentável será sempre a preservação das florestas, que são estoques naturais de carbono.
Quanto ao uso da terra, sistemas de confinamento naturalmente ocupam menos espaço do que sistemas extensivos. É necessário considerar, porém, a área requerida para a produção dos alimentos que compõem a ração oferecida a esses animais. Apenas no Brasil, cerca de 660 mil km² — uma extensão maior que o estado de Minas Gerais — são dedicados ao cultivo de soja e milho. Grande parte dessa produção é destinada à fabricação de ração animal.
Já no sistema extensivo, a necessidade de área por animal depende de inúmeras variáveis, como a média de precipitação local, a qualidade do solo, o tipo de pasto e as técnicas de manejo empregadas. Logo, é difícil estabelecer um valor exato para a área necessária. Contudo, alguns estudos [1, 2, 3] sugerem que entre 0,7 a 4 hectares sejam necessários por animal no sistema de criação “grass-fed”. A realidade brasileira reflete os valores estimados. A população de gado no Brasil chega a 235 milhões, dos quais 95% (ou seja, cerca de 223 milhões de animais) é criado em regime de pastagem, cuja área total chega a 167 milhões de hectares. Portanto, uma média de 0,75 hectares/animal.
Considerando que a criação de gado já é um grande problema em termos de desmatamento no Brasil e no mundo, a difusão do sistema de criação grass-fed implicaria o aumento da área necessária para pastagens, agravando ainda mais a situação — principalmente se considerarmos que a população global de bovinos chega a 1,5 bilhão de animais, segundo estimativas da FAO.
Todavia, tal questão não deve ser analisada puramente em termos de eficiência. Além dos impactos ambientais, diferentes formas de criação influenciam diretamente o bem-estar desses animais. Sistemas intensivos são conhecidos por práticas prejudiciais e mesmo cruéis, como alta densidade populacional e restrição de movimentos, que levam ao estresse e adoecimento crônico dos animais, sendo frequentemente utilizados antibióticos para controle e prevenção de doenças. Como resultado, observa-se o desenvolvimento de zoonoses e de bactérias resistentes a antibióticos, além da poluição massiva dos recursos hídricos – questões que também impactam diretamente o bem-estar do ser humano. Logo, diferentes fatores precisam ser analisados conjuntamente, sendo difícil, senão impossível, constatar qual o melhor, ou mais sustentável, sistema de criação em definitivo.
O que podemos constatar com certeza é o seguinte: há um enorme contraste entre alimentos de origem animal e vegetal em termos de pegada ambiental. Para a produção de ração destinada aos animais para consumo, cultivam-se vastas monoculturas que priorizam o uso de fertilizantes e agrotóxicos. Isso causa poluição do solo e da água, além de comprometer a biodiversidade. Essas terras poderiam ser aproveitadas de maneira mais eficiente e sustentável se fossem utilizadas para cultivar alimentos diversificados, consumidos diretamente por pessoas. A alimentação baseada em carnes e derivados, independentemente do sistema de produção, também resulta em maior emissão de dejetos no ambiente e gases de efeito estufa na atmosfera, quando comparada à alimentação baseada em vegetais.
Logo, a alimentação vegana se apresenta como a alternativa mais promissora para mitigar os impactos da nossa alimentação no meio ambiente – conforme diversos estudos afirmam [1, 2, 3]. Ao eliminar o consumo de produtos de origem animal, reduzimos drasticamente a demanda por terras para pastagem e cultivo de ração, diminuímos as emissões de gases de efeito estufa, a poluição do solo e da água e preservamos a biodiversidade. Ao invés de tentar determinar qual o sistema de produção mais sustentável, grass-fed ou intensivo, melhor seria não consumir alimentos de origem animal, pois, em última análise, eles não são sustentáveis.